quinta-feira, 7 de abril de 2011

O Caio dos Óculos Ray Ban

Em 1990, ano de Copa do Mundo, comecei a trabalhar em uma empresa na área de processamento químico. Uma experiência nova, pois não tinha nem noção do trabalho e do processo, fora o curso que havia feito na mesma empresa, mas algo me chamou atenção: O salário era muito bom, valeria à pena.
Já havia trabalhado como supervisor de manutenção coordenando equipes multi funcionais em duas empresas grandes: Uma, líder no setor de informática no anos 80, e outra, um hospital classe AAA, hoje clínicas integradas, situado nos caminhos da Gávea, mas em nenhuma delas ganharia o que receberia nessa, nem que fosse promovido 4 vezes. Submeti-me aos cursos, testes, treinamentos fortes, e fui em frente, passei. O tempo foi passando, novos amigo sugiram.
Um desses amigos me dava carona, revezámos nisso, vou chamá-lo Caio, este nome é fictício. Às vezes meu carro quebrava, o que não raro de acontecia com aquele Corcel II LDO, ano 79, que uma vez rompeu a borracha da gasolina às 10h da noite em frente a comunidade de Barros Filhos, na área escura da Av. Brasil, me deixando na mão, e em outras, o carro dele dava pane e e aí eu o levava e trazia. O dele era um Passat 77, só carrão no esquema.

O sistema de revezamento da alimentação era de certa forma rígido, pois trabalhávamos em turno e sempre com a possibilidade de haver algum problema na planta no momento de ausência da equipe.  Muitas vezes, em 12 anos de empresa, participei da saída em disparada na direção das bombas e fornos após um simples piscar de lâmpadas. A senha era: PIQUE DE LUZ! E todos saíamos correndo, cada um para seu setor a fim de evitar danos, em geral fazíamos isso com eficiência, não havia espaço para erros.
Naquela noite, pois estávamos tirando um "zero hora" tranquila (íamos das meia noite às seis da manhã), e lá pelas 02:30h nos reunimos no "fumador" (o fumador era um local onde os apreciadores do hábito podiam desfrutar de sua fumaça com liberdade e sem risco de "flashear"). Sentávamos todos ali para ouvir e contar histórias, jogar conversa fora, ficar quietos pensando em nada, se bem que, nesses momentos, sempre aparecia um maluco vindo de não sei onde e fazia algo que despertava todo mundo. Uns ficavam no banco do fumador, acomodação para 2, 3 já ficava apertado, e outros ficavam em volta da casinha e outros se recostavam numa tubulação que recebia óleo dos navios enquanto desempenavam as costas.
Caio, que quase sempre sentava no fumador, me chamou com um sinal feito com a mão que empunhava o cigarro, para conversar.
Ele estava menos brincalhão do que o costume. Seus óculos escuros, que, não sei por que, sempre usava à noite, escondia seus olhos. Começamos falando sobre nada, daí passamos para as festas que ele ia, e finalmente o assunto foi o Cordão do Bola Preta, um clube na 13 de Maio, "O Quartel General do Samba".


Ele começou a contar sua história, de como saia e curtia as noites com o "pessoalzinho", e que numa dessas saídas do Bola, já nascendo o dia, estava muito triste e infeliz com sua vida e, após beber muito, saiu do clube desnorteado, com uma garrafa de bebida na mão, e rumou ao ponto na Av. Rio Branco, atravessando a Cinelândia até sentar no meio fio e ficar pensando em dar fim à vida jogando-se à frente de um ônibus. Nisso, contava, ele, um rapaz de pele clara, muito clara, de olhos azuis e roupa branca, sentou-se ao seu lado no meio fio e perguntou:
- Mas, por que você está querendo fazer isso?
Era como se lesse sua mente e soubesse da sua vontade de se jogar em baixo de um ônibus.
- Caio (falou colocando a mão em seu ombro enquanto com a outra tirava a garrafa deu sua mão), vá pra casa... Vá ficar com sua esposa e sua filha, tudo vai melhorar a partir de hoje...
Falou isso, levantou e saiu.
Ele contava isso pra mim me olhando com seus óculos Ray Ban de lentes marrons e armação dourada, dizendo que sua vida tinha mudado mesmo. De repente, parou...

Depois de uma longa pausa e silêncio de ambos, ele rompeu o tempo, fazendo aquela pergunta estranha, virando sua cabeça em minha direção com seu pescoço gordo:
- E você quando é que vai aparecer na quinta, no quinto andar daquela empresa pra reunião? O pessoal tá te esperando lá, você já não leu o livro?
Péra, péra, péra... Que que é isso?!?!?! Que papo é esse?
Isso é que se passava na minha cabeça enquanto ele tirava o Ray Ban do rosto e o balançava pela haste como se nada tivesse acontecido, enquanto aguarda a reposta... Resposta que nunca teria, pois, para minha salvação, fui chamado pelo rádio para realizar uma manobra, pedi licença e me dirigi ao setor com minha mente a mil.
Passou o turno, veio o folgão, que começava na quinta, e na segunda voltamos todos às 18h. Início normal mas a notícia já corria pelos amigos, Caio havia pedido demissão no último zero hora, naquela quinta. Havia esperado os chefes e comunicado que não retornaria mais ao trabalho, sem motivo algum.

Se você quer saber, li todos os livros, nunca fui a uma reunião no quinto andar, continuei  comprando livros na livraria do Madureira Shopping, onde ganhava excelentes descontos por ser cliente assíduo e nunca mais encontrei Caio.

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